Storicamente. Laboratorio di storia

Dossier

Igreja e Estado no Brasil: o pacto da construção do ideário e da práxis fascista

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Abstract

The purpose of this paper is to analyze the discourses of both the Church and the State, noting similarities between them in the construction of Brazilian fascism (1937 - 1945) known as “Estado Novo”. The 1930s in Brazil emerged with an Europe presented as the image of a new El Dorado, a kind of lost Eden. The discourse production of this decade polarized two extremities: one considering Europe as the prototype of order and modernity, in contrast to the image of the second one: a transgressive Europe, contaminated by the “germ” of the “anarchic” ideology and communism, represented by Russia, the Mexican Revolution and the Spanish Civil War. The authoritarian ideology traveled across the Atlantic and arrived in Brazil, reproducing the new Nazi and fascist paradigms present in Europe. A “community of meaning”, grouping Brazilian intellectuals, received these new models very well. Their fundamentals (racism, authoritarianism and nationalism) were essential to the ideal of order versus disorder spread through the Brazilian society. The Church encompassed this discourse. Thus, catechetical discourses joined the political discourses.

No eclodir da Revolução de 30, o discurso da Igreja mostra um interdiscurso (Pêcheux 1999), uma memória discursiva, que traz à tona velhos discursos, que refletem as duas décadas anteriores, quando a Revolução Russa modificou o panorama da Europa católica e a Revolução Mexicana traz para o seio da América os ideais bolchevistas e de rechaço ao poder da Igreja Católica.

A década de 30 traz consigo também transformações relevantes nos espaços políticos e públicos de Recife. A Revolução de outubro de 1930 representa a gênesis da trajetória destas mudanças nestes espaços, quando a política permite que a Igreja ocupe e compartilhe do espaço do Poder. A instauração da República no Brasil em 1889 trouxe o laicismo e a separação da Igreja do Estado. Por quarenta anos a Igreja amargou esta situação, buscando o resgate de seu espaço político junto ao Poder.

Nesta ótica o apoio à Revolução de 30 pela Igreja Católica no Brasil, através tanto da hierarquia da Igreja como dos leigos – intelectuais católicos – se dá de forma hegemônica, numa tentativa de recuperar 40 anos de um Estado laicista, que adveio com a República brasileira, somado ao ideário anticlerical, na Europa e no México dos anos 10 e 20. Dizia-se que a Revolução de 30 representava o «bendicto amanhecer de ressurreição». Neste sentido, retoma-se nos anos 30 o conceito de modernidade em defesa da reintegração da Igreja no cenário político nacional. A imprensa religiosa debatia-se pela ideia de que para um país ser moderno e uma grande nação, não haveria a necessidade de se expulsar Deus dos espaços públicos e privados.

A Igreja católica passou a apontar o movimento revolucionário de 1930 como uma verdadeira cruzada e uma Guerra Santa contra o laicismo. Este discurso revelava a plena consciência da Igreja acerca do momento propício para recuperar o Poder Político perdido. Os jornais religiosos passaram a trazer, na primeira página, manchetes enaltecedoras à figura dos revolucionários de 30:

Pelo Brasil; por Juarez e seus irmãos de Cruzada; por quantos nessa causa pelejaram e soffreram e tombaram para sempre e no anonymato e sem glória; por quantos ainda agoram pelejam e soffrem e morrem, sorrindo e cantando, neste bendicto amanhecer da Ressurreição: Brasileiros, sentido! [1]

D. Miguel Valverde, Arcebispo de Olinda e Recife, em Carta Pastoral, quando da revolução de 30, dirigiu-se à população e ao clero local, concitando-os à obediência ao poder político que se instalava, trazendo à tona, o princípio de obediência às autoridades constituídas, como sendo um preceito sagrado, ressaltando que o indivíduo que resistisse à aceitação do novo poder que se instaurava, estaria resistindo à ordenação de Deus [2]. Evidencia-se aí o que Bourdieu chama da importância do poder simbólico, aqui representado pela Igreja, atuando para a manutenção do poder político (Bourdieu 1987, 73-74).

Diante da produção discursiva da Igreja Católica, após 1930, sua práxis não era mais de obediência por princípio transcendental como se expressava até então, mas de uma opção consciente pela nova ordem. A contradição evidenciava-se, quando, na mesma página em que se veiculava na íntegra a Carta Pastoral de D. Miguel Valverde, concitando a sociedade civil à obediência irrestrita às novas autoridades políticas revolucionárias, publicava-se com destaque um artigo do Padre Luiz Góes, Salvemos o Brasil, no qual o sacerdote, conclamava o clero a conduzir a sociedade com o objetivo de compreender que a revolução era «um direito inalienável, conferido por Deus ao povo, que tem o poder de arrancar o mandato dos que pelo despotismo, fraude e traição, degradaram o regimem político» [3].

Assim, o laicismo republicano passou a ser apresentado como: despótico, fraudulento e traidor. Fazia-se necessário apoiar a Revolução que prometia fazer justiça ao povo brasileiro, permitindo que este tivesse o direito de educar seus filhos na religião dos seus antepassados [4]. Por conseguinte caberia à Igreja a educação dos futuros líderes da nação.

A Igreja conferia apoio ao reivindicar participação junto à nova ordem instaurada, apesar de o seu discurso se revestir de uma pseudo-aparência de neutralidade frente ao poder instituído. Todavia, este ocultamento mascarava a prática que se efetuava com uma inserção direta junto aos revolucionários. Em várias cidades do interior do estado, os religiosos foram cooptados para prefeitos, assumindo a Igreja Católica a liderança política do município. Justificava-se, que se tratava de um dever patriótico que nenhum eclesiástico deveria recusar [5].

Retoma-se nos anos 30 o conceito de modernidade em defesa da reintegração da Igreja no espaço político nacional. A imprensa religiosa debatia-se pela ideia de que para um país ser moderno e uma grande nação, não haveria a necessidade de se expulsar Deus das escolas. E, por outro lado, o querer ser moderno, implicava também ser identificado com as idéias bolchevistas ou exóticas cujo sistema pedagógico não tinha por finalidade – segundo o discurso da imprensa religiosa – a espiritualização dos indivíduos.

Em 1930, Nilo Pereira, pertencente ao laicato católica e figura que será proeminente no staff político do Estado Novo em Pernambuco, defendia o discurso religioso, tornando seu este discurso, quando do exercício do poder político em 1937. Um pronunciamento de Nilo Pereira, no jornal A Tribuna, de Recife, em 1930, antecipou este projeto católico que seria veiculado quando da implantação do Estado Novo e Pereira assumiu a direção do ensino em Pernambuco. Fazendo apologia ao novo momento político, Nilo Pereira afirmava que aquele movimento trazia, em seu bojo, a maior verdade contemporânea que consistia na volta do Brasil às suas raízes católicas. Retomando o conceito de moderno colocava-o como consequência das utopias, devaneios e miragens das ideologias da época contemporânea. Ressaltava porém que as mesmas eram inadmissíveis numa nação «predestinada» ao catolicismo. Via nesta ruptura com o liberalismo laico, a implantação do espiritualismo católico, cujo ressurgimento determinaria a morte dos «falsos profetas» visionários [6].

Nilo Pereira era enfático, analisando o retorno da sociedade às raízes católicas, como produto de um determinismo histórico, do qual não se teria como fugir. Conclui o artigo, «tranquilizando» a comunidade dos não católicos – «os outros» – ao afirmar não ser pretensão da Igreja fazer nenhuma espécie de coesão católica. O comportamento reivindicatório da Igreja nos anos posteriores, especialmente após os ganhos na Constituição de 1934, desmentem aquela afirmação: para a Instituição, somente no catolicismo havia verdade e fé, às outras crenças era reservado o lugar de heresias, mentiras, e o pior dos crimes: a pecha de ligação com os bolchevistas.

Configura-se nos primeiros anos da década de 30, no âmbito deste novo discurso e práxis, que refuta o liberalismo e a Revolução Francesa, a formação da Constituinte que vai redigir a Constituição de 1934. É neste ambiente que surgem a Liga Eleitoral Católica e a Ação Católica. A primeira de cunho nacional se volta para a luta de eleger constituintes fiéis às novas demanda da Igreja. Um pacto deve ser selado, através de uma carta compromisso onde os constituintes receberiam os votos das paróquias, mas deveriam votar nas demandas da Igreja.

A segunda, criada em Roma, se espalha pelo mundo católico e vem nas linhas da Encíclica Ubi Arcano Dei de 1922, que traça de Roma para o mundo uma nova prática da Igreja: recuperar o poder perdido com a entrada do bolchevismo da Revolução Russa. A Ubi Arcano Dei é voltada para a criação de um laicato católico, fiéis sátrapas, na reconquista do poder perdido.

Em Roma cria-se também o Colégio Pio Latino, voltado para formar padres para a América Latina: armava-se uma linha de frente diante da Revolução mexicana. Esta tomada deposição da Igreja é muito eloquente no Brasil quando da inauguração do Cristo Redentor no Rio de Janeiro, nas palavras contundentes de D. Leme, então bispo primaz do Brasil [7]. Em seu discurso D. Leme volta-se para Getúlio e afirma que se o Estado não reconhece a Igreja, a Igreja não reconhecerá o Estado.

Em 1916, sai de Recife a Carta Pastoral de D. Leme, quando o mesmo era arcebispo de Olinda e recife, a qual tornou-se a gênesis da recatolização do Brasil, lançando as raízes de uma trajetória que viria a ser plenamente realizada com o advento do Estado Novo, em 1937, data em que a Igreja e o Estado Pernambucano se uniram em um pacto de colaboração recíproca.

O discurso de D. Leme na carta de 1916 perpassa por dois pontos básicos adotados pelo catolicismo e pelo governo de Getúlio Vargas a partir da década de 30: ensino religioso obrigatório e organização da Ação Católica – grupo de intelectuais leigos fiéis à doutrina romana – em todo o território brasileiro. D. Leme assegurava que estes ítens eram os pontos cardeais do ministério sacerdotal.

Logo após o levante comunista de 1935, em crítica a Gustavo Capanema, então Ministro de Educação e Saúde, a Igreja afirmava que aquele político se apresentava oscilante em elaborar um plano de educação que tivesse em sua base a moralidade da escola e a extinção do ensino marxista «que ainda anda com uns ares de coisa moderna» [8].

Diante de toda esta demanda da Igreja, a implantação do Estado Novo (1937) em Pernambuco foi considerado como o momento propício pela Igreja para barganhar junto ao poder político, o espaço que vinha sendo construído desde 1930. Enquanto instituição secular ela oferecia um paradigma catequético que respondia ao momento de crise em que o Estado autoritário buscava legitimidade. Os cânones de obediência, autoridade, fidelidade e ordem, representavam alguns dos cânones presentes no paradigma político nacionalistado Estado Novo. O discurso religioso era propício ao discurso laico.

Assim, associada ao modelo catequético, a Igreja tinha a seu lado um laicato fiel, representante da elite dominante do Estado, verdadeiros intelectuais orgânicos, que elaboravam e sistematizavam as visões de mundo a serem interiorizadas na sociedade civil. Segundo Antonio Novais Filho, prefeito da cidade de Recife em 1937, em discurso representando o Estado, afirmava que o staff político de Pernambuco representava «um punhado de inteligências cultas que ligada ao verdadeiro espírito do catolicismo, procura recristianizar todo o nosso meio» [9].

O discurso da Igreja declarava que a organização do laicato trazia para o seio de Roma, neste século, uma «uma força nova e terrível», que mais uma vez a tornaria invencível. Lembramos aqui a linha teórica de Bourdieu que mostra a confluência do discurso religioso junto ao político. A partir de então, uma verdadeira cruzada contra o laicismo seria empreendida no Estado. Concretizava-se em Pernambuco, com a instauração do Estado Novo, o antigo ideal empreendido por D. Sebastião Leme desde 1916: a colaboração recíproca através da aliança entre o espiritual e o temporal [10].

Esta nova configuração do poder da Igreja junto à esfera do político, em Pernambuco, ficou evidenciada no domínio dos cargos públicos por intelectuais católicos, identificados pela classificação de bons católicos referência marcante e sempre presente na correspondência particular do Interventor Agamenon Magalhães com o Presidente Getúlio Vargas [11]. Na indicação dos nomes a serem cooptados para os postos políticos do Estado, ser «católico praticante» e viver dentro da liturgia do catolicismo, exigia-se como pré-requisito para a ocupação de um cargo público. Estes critérios garantiam ao Estado um corpo de funcionários «fiéis e obedientes» à filosofia católica, «fascinados pela ordem, jerarchia e disciplina» (Almeida 1924, IX).

Alceu Amoroso Lima, intelectual católico e figura proeminente junto à elite política dos anos 30 e no Estado Novo, foi mais além, ao afirmar que o grande trabalho da Igreja, residia em ser operacionada a passagem de católico praticante para militante. Para ele, onde houvesse um católico militante, haveria a possibilidade de barrar a ação anticatólica, que mesmo subterrânea, era sempre perigosa [12]. Interessante observar que este mesmo pré-requisito usado pela Interventoria Agamenon Magalhães, o de ser católico praticante para compor as fileiras da elite governante, foi também utilizado, no mesmo período pela Espanha franquista (Carandell 1976, 24).

Em dezembro de 1937, um mês após a instauração do Estado Novo, a Igreja radicalizava, aconselhando e convocando os católicos a assumirem uma posição política, e ressaltando que seria um mal incalculável permanecer um católico indiferente à vida política de sua pátria [13]. Os jornais e as revistas católicas de Pernambuco reproduziam, sistematicamente, a pressão da Instituição para instaurar o ensino sob a égide do primado espiritual. A discussão perpassava sempre pela crítica ao liberalismo que levava ao laicismo tornando-se gerador do comunismo. Nesta visão, o bolchevismo russo era apontado como consequência fatal do liberalismo da revolução francesa [14].

É quando emerge uma linguagem e uma ação de extrema excludência no discurso religioso, reificando o conceito de Cruzadas. Fazia-se analogia do Brasil com o México, a Espanha e a Rússia «sovietizada». Daí os apelos conclamativos à sociedade para que a mesma se empenhasse numa luta contra os «falsos profetas», que estariam querendo tornar o Brasil «sovietizado». Conclamam-se os católicos a entregarem suas vidas, lutarem, uma vez que o inimigo já havia sido identificado. Atrelado à sua imagem «amedrontadora» previa-se um futuro «desgraçado» e «infeliz» para o Brasil:

pela vastidão do nosso território, pelo problema econômico que nos amedronta, um Brasil sovietizado será mil vezes mais desgraçado do que a própria infeliz Russia [15].

A ideia de Cruzada persistia como uma forma de ação da Igreja Católica para recristianizar o mundo. Nos momentos de desequilíbrio, de perda de poder político, o espírito cruzadista emerge sob novas roupagens. Assim aconteceu em pleno século XX, quando a Igreja se organizou para lutar contra o liberalismo, o comunismo e o judaísmo: eleitos como pertencentes ao corpo de heresias do século XX.

Essas nossas reflexões remetem-nos à análise de Elias Canetti, em sua obra Massa e Poder, que ressalta o fato de a Igreja Católica nos momentos de crise usar sua própria massa – o clero –, que «convertidos em agitadores, cruzam o país, instigando as pessoas [a massa aberta] a uma atividade que em condições normais prefere evitar». O medo de concitar esta massa aberta, levou sempre a Igreja a impor limites, através de uma hierarquia entre a Instituição e seus fiéis, presente em vários rituais: seja, nas procissões, em que esta hierarquia é bem delimitada, seja nos recintos fechados dos cultos. Para Canetti, a Igreja só sai de sua «elegante reserva», quanto à utilização da massa aberta em momentos muito especiais. Conclui, afirmando que «o exemplo mais grandioso de uma deliberação de massas realizada pela Igreja são as cruzadas» (Canetti 1983, 173-174).

Parece-nos que o uso deste discurso de forma tão veemente pela imprensa católica de Pernambuco representava também a possibilidade de a Igreja alijar do espaço político qualquer concorrência à sua esfera de influência. Eleger as raízes históricas do estado como ligadas ao catolicismo, implicava refutar qualquer outra ascendência. O estribilho do Hino do III Congresso Eucarístico Nacional, em Pernambuco, em 1939, excludente em sua linguagem, evidencia o medo latente desta Igreja de perder o seu lugar junto à esfera do Poder Político:

Eis, sus, ó Leão, Leão do Norte!
Ruge ao mar o teu grito de fé!
Creio em Ti, Hóstia Santa, até a morte,
Quem não crê, brasileiro não é! (Annaes do III Congresso Eucharistico Nacional 1940, 35-37).

Este espaço conquistado pela Igreja é sempre lembrado através do crucifixo colocado junto ao retrato do Interventor, presença simbólica tanto de um quanto do outro: a onipresença do Chefe – ideia do sagrado – é associada ao seu retrato. Este panorama vem de encontro às afirmações de Castoriadis sobre a relevância do simbólico: «o simbolismo supõe a capacidade de estabelecer entre dois termos um vínculo permanente, de modo que cada um deles represente o outro» (Castoriadis 1993, 43).

Manifestações são realizadas para fixação daqueles quadros – crucifixo e retrato do interventor – nas Instituições e nos Centros Operários. Esse paralelismo entre o sacro e o político apontava para uma exaltação sagrada à pessoa do chefe político. O grande pacto entre a Igreja Católica e o Estado em Pernambuco poderia ser identificado através destes elementos simbólicos e do processo que Claude Lefort chama da sacralização das instituições pelo discurso (Lefort 1987, 119). emergindo então o que Alcir Lenharo intitula: «a sacralização da política» (Lenharo 1986).

A imprensa católica investe numa produção de discurso do engrandecimento do fascismo, onde os cânones do paradigma fascista são enaltecidos. Anti-marxismo é usado de forma maniqueísta, representando a destruição e o diabo, em contraponto à ideologia autoritária que se impunha como a “vontade de Deus”. A associação do marxismo com um pacto maquiavélico das trevas, torna-se um axioma, confluindo-se então o discurso sagrado com o discurso laico.

Nesta linha, a imprensa religiosa reproduzia frases-chavões do discurso nazi-fascista, arquitetando um regime político ideal, onde Igreja e Estado juntos formavam um governo forte, inquestionável, personalizado, marcado por um anti-liberalismo e um nacionalismo exacerbado. Entretanto, a vigência deste dependia de um controle sobre as massas, uma verdadeira cruzada contra qualquer um que defendesse os ideais marxistas. Representando o antigo, o velho sem se tornar obsoleto, somente a tradição católica, ela sim, deveria ser reificada.

As marcas do discurso da Igreja e do Estado apontam para a reificação do papel do clero em Pernambuco, perpassa pelos feitos políticos gloriosos dos homens da Igreja em prol da nação e pela teoria de que todo brasileiro é um ser político, não importando qual seja sua indumentária: quer vista farda militar, trajes civis ou sotaina eclesiástica. Este discurso dirime qualquer dúvida quanto à inserção política dos sacerdotes no novo regime, afirmando que estes podem e devem orientar os católicos nas reivindicações e garantias de seus direitos.

Enfatizava-se que o comunismo ainda não tinha dominado o Estado, graças ao trabalho destes políticos de sotaina, que através da Liga Eleitoral Católica (LEC) evitaram que fosse instaurada em Pernambuco uma República Socialista, que para a Igreja era uma «tapiação da Comunista» [16].

Assegurar os direitos da maioria católica brasileira, seria possível através das Associações da Igreja, que lutariam pela dupla cristianização: ensino e cargos públicos. O laicismo era apresentado simbolicamente, como se fosse um veneno letal que, subtamente atuava junto à maioria católica, enfraquecendo-a. Daí a estratégia de cooptação política proposta pela LEC [17] e pela Ação Católica (Annaes do III Congresso Eucharistico Nacional 1940, 339).

A Ação Católica em Pernambuco, tornou-se eficaz na formação do laicato fiel, interlocutores entre a Igreja e o Estado. O jornal Fôlha da Manhã [18], possuía uma secção diária intitulada Acção Cathólica, espaço reservado para a divulgação do trabalho realizado. O papel desempenhado pelo Padre Antonio Fernandes na construção do ideário dos jovens que formavam a elite pernambucana – posteriormente auxiliares diretos na Interventoria Agamenon Magalhães – é fundamental para a compreensão do ideário desses intelectuais que vão servir de veículos de irradiação da ideologia autoritária estadonovista.

A visão tomista de educar e ensinar, é bem compreendida por esses intelectuais que, ao assumirem postos decisórios, vão empreender verdadeiras campanhas doutrinárias, objetivando formar o que Baczko chama de um imaginário coletivo (Baczko 1984), pelo qual a obediência e a fidelidade ao poder instituído contribui para a coesão social. Educar o povo, dentro da visão de mundo da elite dominante, era torná-lo maleável e submisso.

Para o Estado, fabricar corpos dóceis, que acatassem a visão de mundo, imposta por seus intelectuais orgânicos, significava barrar a irradiação da ideologia comunista, que soerguia e vitalizava o operariado, acenando com possibilidades de direitos até então sequer questionados [19].

A importância de os cargos públicos estarem em mãos destes intelectuais confiáveis, levava a Igreja a denunciar que a Intentona Comunista de 1935, só ocorreu, porque os principais postos decisórios do Estado repousavam nas mãos dos que tramavam a ruína do Estado. Assim, os comunistas ter-se-iam apossado de postos estratégicos minando, desta forma, a força do Estado:

cátedras das escolas secundárias e superiores, altos postos da administração, as fileiras do exército e da polícia, não para servir ao regimen, mas para estrategicamente, combate-lo e tornar sua ruína [20].

A Igreja se auto intitulava a salvadora política do Estado, soerguendo moral e politicamente Pernambuco. A LEC, foi criada com o objetivo de eleger Constituintes que assegurassem os 2/3 de votos necessários às reivindicações – programa mínimo – da Igreja Católica na Constituinte de 1934. A LEC estava subordinada à Ação Católica, e o objetivo era garantir eleitores católicos e levar ao poder constituintes fiéis aos seus postulados. Não importava que esses fossem católicos praticantes; o essencial era a anuência de uma carta compromisso, em que os mesmos se comprometessem em lutar pelos postulados da Instituição. Esperava-se que estes constituintes ao assinarem as cartas, cumprissem com o seu conteúdo. A lógica que permeava esta estratégia de cooptação é explicitada de forma contundente, em 1934, pelo porta-voz da Curia Metropolitana de Olinda e Recife:

há em Pernambuco 102 paróquias, em cada paróquia um mínimo de 10 pessoas. Ora 102 paróquias com 10 desses eleitores em cada uma, formam um total de 1.020 votos em Pernambuco, o quasi bastante para eleger-se em outubro próximo um deputado estadual [21].

Ao acenar com possibilidades de eleger quem indicasse, a Igreja demonstrava que tinha plena consciência do seu poder de barganha junto aos fiéis e junto ao Estado.

Este discurso é retomado em Recife em 1939, quando em setembro, na Semana da Pátria é sediado o Congresso eucarístico nacional. D. Leme novamente afirma que os católicos não estão ali para dar vivas à virgem Maria, mas para mostrar a maioria católica no Brasil. Firma-se a relevância de um pacto da Igreja Católica com o Estado em prol dos ideais fascistas de ordem.

Essa simbiose Igreja/Estado reafirma-se através da fala de D. Sebastião Leme, Primaz da Igreja Católica no Brasil, quando do encerramento dos trabalhos do III Congresso Eucarístico Nacional, marcado estrategicamente, para o dia da Pátria, 7 de setembro de 1939:pelo discurso perpassam todos os pontos que a Instituição vinha destacando no sentido de concretizar o pacto com o poder público, dentre os quais cabe citar:

- a tese da maioria da população brasileira ser católica, portanto representar o passado e o presente da nação:

agora é a vez do povo brasileiro, a voz de todos os quarenta milhões de consciências! Somos quatro séculos de história christã do Brasil, somos o passado, o presente e o futuro da gente brasileira (Annaes do III Congresso Eucharistico Nacional 1940, 351-352).

- a tese da «Guerra Santa», das novas «Cruzadas» que se levantariam para salvar o Estado das mãos de invasores infiéis:

alliança que nós selaremos se preciso for, com o nosso sangue. Nenhum estrangeiro inimigo do Brasil que aqui viesse tentar romper esta alliança sagrada, teria jamais esperanças de Victoria (ibid.).

Nesta mesma linha discursiva, Arnóbio Tenório Wanderley, Secretário do Interior, ao discursar no mesmo evento, fez uma longa incursão pela Espanha e pelo México, procurando avaliar o gérmen que penetrou em seus sistemas políticos. Acionando signos inerentes ao discurso católico. Convocava a população a uma cruzada contra os comunistas que, segundo ele haviam expulsado Deus de todas as atividades importantes das nações. Neste sentido sua convocação se reveste de uma retórica religiosa, associando o laicismo à morte, à destruição:

depois de expulsar a Deus da intelligencia da sociedade e das leis, chegará o momento de querer expulsar da vida. Será a hora de os christãos darem o seu testemunho de sangue. O laicismo não é somente estéril, elle é assassino!

Martyres do Mexico e da Espanha, neste momento de dor universal nós precisamos de vós! Do vosso exemplo! Do vosso heroismo! Do vosso sangue! (ibid.).

O apelo se faz em torno de alguns conceitos típicos do discurso de extrema-direita, que atribuem causas e consequências das guerras civis, às atividades e à expansão do comunismo no mundo. Compreensível que Tenório Wanderley empregue a expressão “dor universal” para caracterizar a ideologia comunista que penetrava em alguns países, ao mesmo tempo em que elevava à condição de mártir os mortos nas Revoluções Mexicana e Espanhola. Alcir Lenharo, em A Sacralização da Política, trabalhando a temática, aborda o uso da imagem do corpo, inserido na doutrina do Corpo Místico no catolicismo. O autor observa que em 1937 a retórica do discurso do Estado convoca os cidadãos a oferecerem suas vidas, derramar seu sangue em expiação pela Pátria (Lenharo 1986).

O discurso do representante máximo do Estado, Agamenom Magalhães, no mesmo Congresso, no dia 7 de setembro – dia da emancipação do Brasil de Portugal – semelhante ao de Arnóbio Teixeira, traz as marcas do discurso de D. Leme, seguindo a linha cruzadística, elegendo a tradição do catolicismo a base do seu discurso. Seu pronunciamento no mesmo dia 7 de setembro, é uma verdadeira réplica ao pronunciamento de D. Sebastião Leme, tanto no que se falam explicitamente, como nas omissões. O apelo à tradição católica emerge no culto ao passado religioso, apresentado como hierarquizado, ordeiro, em detrimento de um presente laico, permeado pela desordem. A riqueza deste pronunciamento encontra-se nos matizes do pacto efetuado entre a Igreja e a Interventoria, que se expressa através da afirmação pelo Estado de que o Brasil não é uma nação sem Deus: «se o laicismo predominou, por vêzes, em nossos códigos, não venceu as consciências» (Annaes do III Congreso Eucharistico Nacional 1940, 377).

O exemplo dos holandeses retorna sempre contrapondo a figura do estrangeiro ao do herege invasor: «destruindo os templos, as alfaias e os vasos sagrados». Contra este invasor herege, apontado como o que arrebatava a pátria, uniram-se Igreja e Estado para a Guerra Santa. Ficava implícita a idéia de uma luta unida contra as doutrinas exóticas, contra o imigrante estrangeiro, identificado como o imigrante judeu, análogo de comunista. Reafirma-se que:

os sacerdotes acompanharam os exércitos, confundindo-se com elles nas trincheiras e na morte, extremando-se com igual zêlo na defesa da Igreja e do Brasil. A guerra contra o invasor foi uma Guerra Santa (ibid.).

Afirmando que a Igreja Católica não tinha problemas a resolver com o Estado – daí não se fazer necessário cláusula escrita ou concordata para que a jurisdição eclesiástica fosse exercida em sua plenitude – o Interventor dirime qualquer dúvida que pudesse pairar entre os dois poderes. A justificativa para este exercício do direito da Instituição em compartilhar em toda a sua plenitude, é dada como uma lei natural inerente à Igreja Católica no Brasil: «os nossos homens de governo trazem do berço, a predestinação christã» (ibid.).

Assim, a predestinação, um fenômeno transcendental, não pode ser questionada, daí a afirmação do Interventor de que «raizes, pois, tão profundas, nem as tempestades, nem as fúrias da natureza, nem os desvarios dos homens poderiam arrancá-las». Ali foram firmadas questões relevantes à configuração da participação da Igreja no espaço político do Estado Novo:

- sendo a tradição católica apresentada como única regra de fé para Pernambuco e o Brasil;

- reivindicando o passado de luta da Igreja e do Estado na defesa da Pátria;

- firmando um compromisso de atuação nos moldes da Ação Católica, cooptando o laicato fiel da Igreja para os cargos políticos;

- estipulando que a área da Educação estaria sob o olhar vigilante da Igreja;

- valorizando o Primado Espiritual em detrimento do Primado Econômico, ou seja, a reificação da Filosofia tomista.


Bibliografia

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Note

1. A Tribuna, Recife, 23 de outubro de 1930: 1.

2. Valverde, D. Miguel. 1930. “Carta Pastoral endereçada aos Rvmo. clero Secular e Regular e aos fiéis da archidiocese de Olinda e Recife. Recife, 8 de dezembro de 1930.” A Tribuna, 9 de dezembro: 1.

3. Campos Goés, Luiz Pe. 1930. “Salvemos o Brasil.” A Tribuna, 9 de outubro: 1.

4. Pedroza, Cônego Xavier. 1930. “Para a Frente! Vae Brilhar a Hora da Justiça.” A Tribuna, 30 de outubro: 1.

5. A Tribuna, Recife, 9 de outubro de 1930: 4.

6. Pereira, Nilo. 1930. “Esthética de uma Campanha.” A Tribuna, 2 de outubro: 2.

7. D. Sebastião Leme teve nos anos 20 e 30 um papel relevante na direção de cooptar o laicato católico para a ingerência no staff político da nação. Foi arcebispo de Olinda e Recife e escreveu uma Carta Pastoral em 1916 que tem sido referência para os que estudam o papel da igreja católica junto ao poder político e a instrumentalidade do uso da educação neste processo.

8. A Gazeta, Recife, 8 de março de 1936: 1.

9. Novaes Filho, Antonio. 1937. “A Vanguarda da Fé Pernambucana.” A Tribuna, 14 de dezembro: 1.

10. A Ordem, maio 1938: 483.

11. Arquivo Agamenon Magalhães. Pasta AMG 38.12.12/2 CPDOC/FGV.

12. A Tribuna, Recife, 12 de dezembro de 1938: 1.

13. Gomes, Perilo. 1937. “O Mal Maior.” A Tribuna, 9 de dezembro: 1.

14. Mendes, Oscar. 1932. “O Liberalismo no Brasil sob o ponto de vista católica.” A Ordem: 31-45. Esta discussão é presente nos jornais diariamente, como doutrinamento e persuasão.

15. A Gazeta, Recife, 3 de janeiro 1938: 2.

16. A Tribuna, Recife, 16 de setembro 1937: 1 (acervo da Biblioteca da Curia metropolitana de Olinda e Recife).

17. A Liga Eleitoral Católica (LEC), foi criada com o objetivo de eleger constituintes que assegurassem os 2/3 de votos necessários às reinvindicações da igreja católica na Constituição de 1934. A LEC estava subordinada à Ação Católica, e o objetivo era garantir eleitores católicos e levar ao Poder constituintes comprometidos com os ideais da Igreja. As críticas em torno de que a LEC manipulava as eleições são sempre respondidas com artigos que falam sobre o papel savífico da Igreja na política brasileira. Uma trilogia de artigos de Alceu Amoroso Lima na revista A Ordem, são elucidativos acerca do ideário político da LEC em 1934: “Primeiras Victorias”, maio 1934; “Os Perigos da Victoria”, julho 1934 e “O Sentido de Nossa Victoria”, junho 1934.

18. O Jornal Folha da Manhã, Porta voz do Estado, foi criado quando do golpe do Estado Novo. A correspondência de Agamenom Magalhães, o interventor, com Getúlio Vargas mostra a relevância que o Estado dava ao discurso do jornal. Vide o Arquivo pessoal de Agamenom Magalhães no acervo do CPDOC/FGV.

19. Antonio da Fonte (1936. In Annaes da Assembléia Legislativa de Pernambuco. Sessão 07.12.1935. Recife: Imprensa Oficial).

20. A Tribuna, Recife, 10 de dezembro de 1937.

21. A Tribuna, Recife, 1 de agosto de 1934.